Léa

ensino , aprendo e faço arte ...

terça-feira, 16 de março de 2010

Pablo Neruda e o gato...





Os animais eram

imperfeitos,

compridos de rabo, tristes

de cabeça.

Pouco a pouco foram se

compondo,

fazendo-se paisagem,

adquirindo pintas, graça, vôo.

O gato,

só o gato

apareceu completo

e orgulhoso:

nasceu completamente terminado,

anda sozinho e sabe o que quer.









 

O homem quer ser peixe e pássaro,

a serpente quisera ter asas,

o cachorro é um leão desorientado,

o engenheiro quer ser poeta,

a mosca estuda para andorinha,

o poeta trata de imitar a mosca,

mas o gato

quer ser só gato

e todo gato é gato

do bigode ao rabo,

do pressentimento à ratazana viva,

da noite até os seus olhos de ouro.







 

Não há unidade

como ele,

não tem

a lua nem a flor

tal contextura:

é uma coisa só

como o sol ou o topázio,

e a elástica linha em seu contorno

firme e sutil é como

a linha da proa

de uma nave.

Os seus olhos amarelos

deixaram uma só

ranhura

para jogar as moedas da noite.





 

Oh pequeno

imperador sem orbe,

conquistador sem pátria,

mínimo tigre de salão, nupcial

sultão do céu

das telhas eróticas,

o vento do amor

na interpérie

reclama

quando passas

e pousas

quatro pés delicados

no solo,

cheirando,

desconfiando

de todo o terrestre,

porque tudo

é imundo

para o imaculado pé do gato.






 

Oh fera independente

da casa, arrogante

vestígio da noite,

preguiçoso, ginástico

e alheio,

profundíssimo gato,

polícia secreta

dos quartos,

insígnia

de um

desaparecido veludo,

certamente não há

enigma

na tua maneira,

talvez não sejas mistério,

todo o mundo sabe de ti e pertence

ao habitante menos misterioso,

talvez todos acreditem,

todos se acreditem donos,

proprietários, tios

de gatos, companheiros,

colegas,

discípulos ou amigos

do seu gato.



Eu não.

Eu não subscrevo.

Eu não conheço o gato.

Tudo sei, a vida e seu arquipélago,

o mar e a cidade incalculável,

a botânica,

o gineceu com os seus extravios,

o pôr e o menos da matemática,

os funis vulcânicos do mundo,

a casaca irreal do crocodilo,

a bondade ignorada do bombeiro,

o atavismo azul do sacerdote,

mas não posso decifrar um gato.

Minha razão resvalou na sua indiferença,

os seus olhos tem números de ouro.



(Pablo Neruda)



2 comentários:

Silmara Souza Melo disse...

Meu Deus que lindo! É uma maravilhosa definição para os nossos queridos companheiros! Lindo poema, só quem tem gato sabe que eles são exatamente assim.

olhoscoloridos disse...

Eu tb gostei...
Que nome teria o gato de Neruda?
Com certeza ele tinha um...